sábado, 8 de abril de 2017

FOI O ESTADO NOVO TRAÍDO, EM ÁFRICA?



Em 2009, participei num colóquio do Instituto de Defesa Nacional, onde apresentei uma comunicação com o título “Guerra Colonial – Uma Aliança Escondida”. O assunto respeitava ao acordo “Alcora” que foi assinado em 1970 entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia. Mais tarde, eu e o Carlos de Matos Gomes publicámos um livro onde desenvolvemos o tema e que se chama “Alcora, o Acordo Secreto do Colonialismo”. Esta foi a primeira vez que um público mais exigente ouviu falar de tal acordo e alguns dos assistentes tiveram dificuldade em aceitar a realidade. Mas nós já tínhamos falado no assunto num colóquio em Faro em 2008, aí sim a primeira vez que o assunto foi tratado em público.
Depois a investigação seguiu o seu curso e hoje é assunto bastante debatido, embora deixe ainda perplexos muitos dos que tomam contato com esta face do regime português.
O texto foi depois publicado na revista “Nação e Defesa” e fica aqui com um novo título.


Capa da 2ª edição do livro "Alcora, o Acordo
 Secreto do Colonialismo", 2016. 

1. Na primeira fase da guerra colonial, o regime português estava convencido que seria capaz de encontrar uma solução para a agitação interna de Angola e de construir uma via capaz de extinguir o problema. Portugal era um país colonial experiente e, de uma forma geral, sempre encontrara soluções, mesmo quando foi necessário mudar.

Para o regime, os acontecimentos de Angola eram mais uma expressão da influência externa, vinda do Congo, e fomentada pelo comunismo, do que uma vontade saída das elites negras angolanas, que o regime bem sabia serem praticamente inexistentes.

A equipa que foi nomeada, com Venâncio Deslandes para Angola, Sarmento Rodrigues para Moçambique, e Adriano Moreira para o Ministério do Ultramar é um sinal inequívoco de uma estratégia que parece pensada e adequada à situação, tanto quanto isso é possível num regime de compromissos permanentes, embora no âmbito exclusivo dos seus apoiantes. Estes três homens eram conhecedores, moderadamente autonomistas, com um pensamento de alguma coerência entre si. O regime parecia apostado em encontrar uma solução, dentro do quadro da sua política ultramarina e dos limites ditados pelo regime: autonomia controlada, prevalência do poder português (branco se quisermos), salvaguarda dos interesses das grandes empresas portuguesas (muita vezes contraditório com os interesses da comunidade branca em geral).

Embarque de tropas em Lisboa para Angola, 1961 (TT).
Mas houve dois factos que não tinham sido considerados na análise: a raiz dos movimentos autonomistas, que se filiavam na mudança do mundo dependente (incluindo a guerra revolucionária) e a falta de cultura internacional das elites brancas das colónias (que imaginavam a perenidade do seu estatuto).

Este equívoco durou dois anos. Em 1963 estava por terra. Depois disso nunca mais o regime conseguiu conceber ou admitir uma doutrina coerente e um plano adaptado à realidade, mesmo sob o seu ponto de vista. A política ultramarina do regime transformou-se num jogo de equívocos.

E como, apesar de tudo, as políticas são assumidas por pessoas e dependem, em grande parte, do seu próprio pensamento, do seu empenho e tantas vezes do seu carisma, a condução da guerra (das guerras) teve mais a ver com as personalidades do que com o regime. Mas nunca devemos exagerar a autonomia das personalidades em relação à natureza do regime. Nenhum dos comandantes dos teatros de operações que se seguiram se manifestou contrário ou sequer crítico do sistema político (e muito menos o fizeram os representantes da administração colonial).

De alguma forma é necessário esperarmos vários anos para termos três comandantes-chefes com três soluções para a guerra – Spínola na Guiné, Kaúlza de Arriaga em Moçambique e Costa Gomes em Angola. São três soluções muito diferentes. Mas, na conjugação das suas estratégias com a intervenção do poder de Lisboa (já assumido por Marcelo Caetano), nenhuma constituiu uma solução para o problema colonial. A solução de Spínola, ousada para os limites do regime, acabou recusada por Marcelo Caetano; a solução de Kaúlza de Arriaga demonstrou ser nula do ponto de vista político e desastrosa do ponto de vista militar; a solução de Costa Gomes, conseguindo inegáveis êxitos militares, deixou de fora a questão essencial da solução política.


2. Esta situação também tem a ver com as relações entre as Forças Armadas e o regime. Não é necessário alongar este tema para compreender o papel das Forças Armadas numa ditadura. Elas são sempre um suporte essencial do poder. Os conflitos no interior das Forças Armadas, ou destas com outros elementos do sistema, são conjunturais e traduzem-se em lutas de facções que não se empenham em levar longe demais os seus posicionamentos. Fazê-lo, configuraria o questionamento do regime.

No caso português, as Forças Armadas foram fiel instrumento da política do Estado Novo. A oposição à transformação interna do regime e à reformulação da sua política colonial foi sistematicamente participada pelas Forças Armadas, tanto em termos de definição de princípios e alternativas, como na sua execução. Não quer isto dizer que não tenha havido oposições individuais, desconforto e crítica interna, mas nunca chegou a configurar-se a unidade militar suficiente para inflectir a atitude de apoio ao regime.

Movimentos significativos de oposição ao regime só aconteceram com a tentativa de golpe militar de Botelho Moniz em 1961 e, claro, com o movimento dos capitães, a partir de 1973.


3. E se internamente não seria de esperar uma consistente alternativa gerada na sociedade ou no seio das forças armadas, talvez se pudesse esperar que a comunidade internacional tivesse sido mais firme com a ditadura portuguesa, em especial depois do início da guerra colonial ou, ao menos, depois da sua opção pela resistência a todo o custo.

Nas relações do regime português com o mundo, no período da guerra, podemos considerar que, de uma forma geral, a grande maioria dos países foram extremamente hostis ao regime português. E que, dentro deste mundo hostil, se situaram os países do bloco socialista, os países do Terceiro Mundo (afro-asiáticos) e os países nórdicos.

Mas houve também, como suporte da sobrevivência do regime, os países que podemos considerar indulgentes (e também colaborantes), como a Alemanha, a França, a Inglaterra, outros países europeus e os Estados Unidos.

Dean Rusk, secretário de estado americano em Lisboa (TT).

Apesar disso, os Estados Unidos ocupam um lugar à parte, nas suas relações com Portugal, pelos múltiplos compromissos resultantes da sua condição de super-potência. Pelo que devemos distinguir vários períodos que, tendo a ver com as sucessivas administrações de Kennedy, Johnson e Nixon, nem sempre corresponderam exactamente a esta lógica.

Mas, para além dos países hostis e indulgentes/colaborantes, devemos considerar os chamados países “irmãos”, como a Espanha e o Brasil (este depois de 1964), inegáveis suportes morais e materiais da sua política colonial, apesar das diferentes opções de cada um.

Finalmente, do que gostaríamos de falar era de dois países que a linguagem local designava por “primos” – a África do Sul e a Rodésia.


4. Vamos partir de um princípio. O regime português tinha uma doutrina oficial em relação às suas colónias – Portugal era um país pluricontinental e multirracial. A África do Sul, sem rebuço, assumia a sua política oficial do chamado “desenvolvimento separado”, na verdade, traduzido no “apartheid” e na supremacia da raça branca. A Rodésia, depois da proclamação unilateral da Independência em 11 de Novembro de 1965 (UDI) tornara-se um país pária em relação à comunidade internacional, não chegando a ser reconhecido por nenhum outro país. Nem Portugal se atreveu a tanto.

Ora estes três países conceberam e assinaram uma Aliança política e sobretudo militar, a que eufemisticamente chamaram “Exercício Alcora”.

Tudo o que vamos abordar é extremamente surpreendente, como o foi para nós, quando consultámos a documentação sobre esta íntima relação.

Um primeiro aviso – todos os contactos e documentos Alcora foram classificados de “Muito Secreto” ou “Top Secret”, e todos sabemos quais os procedimentos relativos a este nível de segurança. Em princípio só participavam pessoas devidamente seleccionadas, que ficavam impedidas de referir qualquer envolvimento. Chega a ser espantoso como a maior parte dos militares nunca se apercebeu da natureza dessas relações; e é intrigante tentar perceber como os comandos portugueses iam dar a conhecer ao mundo, ao país e às Forças Armadas, a sua opção pela aliança com os países vizinhos (foram os representantes portugueses que sempre recusaram baixar o nível de segurança destas relações).

A participação de meios e forças sul-africanas e rodesianas em operações em Angola e Moçambique eram tidas como informais, de ajuda eventual, em situações que também interessavam à defesa destes países.

Tudo começou com uma longa carta de Salazar a Verwoerd, primeiro-ministro sul-africano, em Agosto de 1963: “Nós estamos quase sós em África a defender a civilização do ocidente; a guerra está longe das vossas fronteiras se Portugal puder resistir; há interesse ocidental e sul-africano em que tal hipótese se não verifique; todas as formas de cooperação com Portugal são muito úteis à nossa resistência e à vossa defesa própria”.

Quais foram os antecedentes, destas relações? Em primeiro lugar, o apartheid. O apartheid foi estabelecido em 1948, como desenvolvimento separado de raças, pertencendo a União Sul-Africana à Commonwealth; é por isso que a Inglaterra assume a responsabilidade de alterar o regime de apartheid; o massacre de Sharpeville, em Março de 1960, representa um endurecimento do regime sul-africano, mas também o crescimento da condenação internacional; Macmillan critica duramente a posição sul-africana na cidade do Cabo em Outubro de 1960 (discurso dos ventos da mudança, ou ventos da História); o referendo sobre o corte com a monarquia e a declaração da república, em 5 de Outubro de 1960, consegue uma vitória de 52%; em consequência, concretiza-se a saída da Commonwealth e a declaração da República, em 31 de Maio de 1961; em 6 de Novembro de 1962, a ONU condena o regime sul-africano; no ano seguinte, em 7 de Agosto, a ONU decreta o embargo de armas à República da África do Sul.

A carta de Salazar surge num oportuno momento, quando se completam várias medidas de isolamento do regime sul-africano, exactamente em finais de Agosto de 1963. Em consequência destas relações, Portugal e a África do Sul, assinam, em Outubro de 1964, os primeiros acordos - Emprego de trabalhadores de Moçambique nas minas da África do Sul e acordo sobre o rio Cunene.

Entretanto, a 11 de Novembro de 1965, os colonos ingleses proclamam a independência unilateral da Rodésia. A declaração unilateral de independência da Rodésia teve um impacto decisivo na evolução da situação política e militar em Moçambique durante toda a guerra, mas, além de condicionar a situação militar, em particular na zona de Tete, a instauração de um regime de minoria branca na Rodésia ao lado do regime de apartheid da Africa do Sul, conduziu a uma aliança de interesses com Portugal. Estes acontecimentos desembocaram, em Dezembro de 1965, no embargo internacional ao comércio com a Rodésia, em que o bloqueio do porto da Beira não passou de uma comédia de enganos… Salazar manifestou à Rodésia e aos seus dirigentes o seu apoio.

Cidade do Luso, cerca de 1970, uma das bases "Alcora".

5. Nesta época, a política de defesa da África do Sul assentava nos seguintes princípios:
·        Criação de uma capacidade autónoma de defesa;
·        Programa nuclear;
·        Política de alianças regionais e com outros regimes ou Estados vizinhos.

A partir de Março de 1967 passaram a efectuar-se reuniões regulares entre delegações de Portugal e da África do Sul, com vista à construção de Cabora Bassa.

Em Setembro de 1967 o general Câmara Pina, chefe do Estado-Maior do Exército, mais uma vez em momento oportuno, apresenta às autoridades militares da África do Sul um memorando sobre as necessidades de Portugal: viaturas blindadas, viaturas de transporte, granadas, minas, postos de rádio e medicamentos.

Em Abril de 1968 foi dado um passo essencial para as relações militares de Angola com o ministério da Defesa da África do Sul – a criação dos Centros Conjuntos de Apoio Aéreo entre as forças portuguesas de Angola e as forças sul-africanas.

No início da guerra, os regimes brancos da África do Sul e da Rodésia prestaram um apoio limitado às forças portuguesas. Esse apoio foi aumentando à medida que estes dois regimes começaram a verificar a incapacidade de Portugal de controlar a situação. Estavam preocupados com o seu futuro no caso de uma derrota de Portugal e a partir de 1968 intensificaram os seus apoios, fornecendo material e até unidades de combate. Em 1968, os sul-africanos começaram por fornecer helicópteros Alouette III para serem operados por pilotos portugueses, mas esse apoio evoluiu rapidamente para o fornecimento de tripulações e finalmente foram destacadas companhias das Forças de Defesa da África do Sul (SADF). Estas unidades terrestres e aéreas operavam em conjunto com forças portuguesas, a partir das bases de Cuíto-Canavale e Gago Coutinho, onde foram criados Comandos Conjuntos de Apoio Aéreo (CCAA), em Abril de 1968.

O conjunto de acções de apoio da África do Sul, efectuadas entre 1968 e 1970 foi chamada Operação Bombaim e viria a ser apresentada em 1970, como justificação da necessidade de alterar os pressupostos das relações militares entre Portugal e a África do Sul.

Entretanto, em 10 de Julho de 1968 foi efectuada a adjudicação provisória pelo Governo português da barragem de Cahora Bassa, em Moçambique, ao consórcio ZAMCO, liderado pela África do Sul. Esta foi a última importante decisão sob a presidência de Salazar.

Como primeiro acto concreto de relevância do governo de Marcelo Caetano, devemos assinalar a assinatura de um novo acordo entre Portugal e a África do Sul para aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Cunene, em 21 de Janeiro de 1969. Este acordo foi assinado na sequência do anterior acordo de 1964 e, em termos técnicos, resultava da evolução nos estudos de desenvolvimento do projecto entretanto realizados. Em termos políticos este novo acordo representava o estreitamento das relações entre Portugal e a África do Sul, as quais passavam por estes grandes empreendimentos hidroeléctricos, do Cunene e de Cahora Bassa.

E logo em 23 de Março do mesmo ano visitaram Lisboa o ministro da Defesa da África do Sul, P. Botha, e o comandante das Forças Armadas, general Fraser. Os dois dirigentes sul-africanos chegaram a Lisboa para uma visita de três dias, vindos de França, onde tinham assistido ao lançamento à água de três submarinos destinados à RAS. Era a primeira visita de altos dirigentes da África do Sul a Portugal depois da tomada de posse de Marcelo Caetano e a retribuição da visita de Sá Viana Rebelo a Pretória. A África do Sul desejava conhecer as intenções do homem que substituíra Salazar.

Guerrilheiros do MPLA no Leste de Angola.

Durante o governo de Marcelo Caetano a evolução da situação militar em Angola e, principalmente, em Moçambique forçou o estreitamento das relações de Portugal com a África do Sul, especialmente no campo militar e dos serviços secretos. No entanto, a publicitação da existência de um eixo branco funcional Lisboa-Pretória-Salisbúria, como pretendia a África do Sul, esbarrou sempre no prurido português de se identificar publicamente com os dois regimes segregacionistas.

De forma mais clara efectuou-se, em 19 de Setembro de 1969, a assinatura do contrato de construção da barragem de Cahora-Bassa com o consórcio ZANCO, formado por empresas portuguesas, sul-africanas, alemãs, francesas e suíças, a que se juntaram interesses ingleses e americanos.

Mas foi em 1970 que a natureza das relações entre Portugal e a África do Sul iniciará uma profunda transformação, depois de uma reunião de alto nível em Pretória, entre delegações dos dois países, efectuada em 4 de Março, para um ponto de situação das relações militares entre ambos, focando em especial os territórios de Angola e de Moçambique.

A delegação da África do Sul era chefiada pelo comandante das Forças de Combate Conjuntas, tenente-general C. A. Fraser, que mantinha relações muito estreitas com as autoridades militares portuguesas, quer em Portugal, quer em Angola e Moçambique. Neste encontro, a África do Sul fez um longo ponto de situação das relações com as forças armadas portuguesas, em especial no sul e sueste de Angola, bem assim como apresentou uma perspectiva de colaboração futura.

Em primeiro lugar, foi feito pela África do Sul um balanço das relações mantidas com Angola depois de 1968, através da “Operação Bombaim”, especialmente traduzida no apoio aéreo à acção das forças portuguesas no terreno. Como afirmava o representante sul-africano, “A Força Aérea Sul-Africana tem estado a apoiar os Portugueses, no Este e Sudeste de Angola, em apoio directo e indirecto, desde Junho de 1968”.

De acordo com o quadro dos apoios concedidos, tal empenho cifrava-se em cerca de 7000 horas em apoio directo e 500 horas de apoio indirecto. A que se deveria acrescentar a manutenção de uma média de 18 oficiais e de 54 outras patentes em apoio à operação só da Força Aérea, para além de outros 150 homens que asseguravam o apoio de retaguarda.

Os resultados de tão profundo empenhamento não poderiam considerar-se brilhantes, pelo que se impunha uma revisão geral das condições de cooperação com as forças portuguesas, razão do encontro entre os representantes de ambos os países. A África do Sul propôs que se discutisse “Um Plano de Defesa para a África Austral”, apresentando desde logo o seu ponto de vista, em conferências divididas pelos seguintes temas:

1ª Parte – A situação militar na África Austral, com referência especial para a República da África do Sul;
2ª Parte – A situação no Este e no Sueste de Angola – Distritos do Moxico e Cuando-Cubango;
3ª Parte – Plano de Defesa para a África Austral;
4ª Parte – A República da África do Sul na condução global da campanha no Sueste de Angola.

Relativamente ao plano de defesa da África Austral, a questão a que deveria responder-se era a de saber como “fazer face a um inimigo comum”. E para isso era necessário um plano comum de utilização das tropas disponíveis de forma coordenada e planeada.

Este encontro, seguido da visita do primeiro-ministro da África do Sul, John Vorster, a Portugal, em 5 de Junho de 1970, levaram à assinatura de um acordo de base, em 14 de Outubro de 1970, orientador das conversações tripartidas entre Portugal, a República da África do Sul e a Rodésia. O acordo, designado “Exercício Alcora”, foi aprovado pelo ministro da Defesa de Portugal quase imediatamente, em 28 de Outubro de 1970; e veio a ser confirmado no ano seguinte pelos ministros da Defesa da África do Sul e da Rodésia, respectivamente em 12 de Maio e em 26 de Julho.

As conversações para o acordo tiveram lugar em Pretória, entre 7 e 9 de Outubro. As delegações militares de Portugal e da África do Sul eram chefiadas respectivamente pelo coronel Rocha Simões, director da 5ª Divisão do SGDN e pelo brigadeiro Greyvenstein, director do planeamento estratégico do Ministério da Defesa.

Aí ficou esclarecido que “o objectivo do Exercício Alcora consiste em investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, Rodésia e África do Sul, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral”.

No documento assinado a 14 de Outubro são mencionados os assuntos a considerar para discussão futura, destacando-se, entre outros:

- Estudo da ameaça;
- Elementos de Estratégia;
- Táctica e normas de execução permanente em combate;
- Informações;
- Cartografia;
- Telecomunicações;
- Transportes;
- Logística;
- Aquisição de equipamento;
- Guerra psicológica.

O modus operandi proposto previa que, depois de conseguido o acordo para cada assunto, fosse nomeada uma comissão conjunta. E que acima das comissões para os diversos assuntos, se previsse desde logo uma comissão militar de alto nível, com “autoridade para estabelecer políticas, definir orientações e coordenar a acção das subcomissões”.

O acordo previa que, depois do documento ser aprovado pelas autoridades dos três países, se realizasse uma nova reunião, desde logo marcada para a África do Sul. Veio a ocorrer no período de 30 de Março a 1 de Abril de 1971, em Pretória.

Estas reuniões de alto nível prosseguiram, tendo-se realizado seis antes do 25 de Abril de 1974, e uma última em Junho deste ano, destinada a encerrar este ciclo de actos preparatórios para uma efectiva aliança militar destinada à defesa de um poder branco na África Austral.


Patrulha portuguesa em Tete, Moçambique (AHM).

Em paralelo com estas reuniões realizaram-se dezenas de outras, de variadíssimas áreas militares, visando estabelecer regras e procedimentos comuns, para o emprego de forças militares conjuntas. Passaram também a ser comuns as reuniões de responsáveis pelas informações e pelos serviços secretos dos três países, assim como as visitas de altos responsáveis políticos e militares.

Contudo, só em Setembro de 1973 os ministros da Defesa de Portugal, África do Sul e Rodésia aprovaram a criação de uma Organização Permanente de Planeamento Alcora (PAPO). Este novo órgão constituía o culminar de um trajecto percorrido desde a primeira reunião de alto nível em Março de 1970. Ele iria integrar as atribuições anteriormente dispersas pela comissão de coordenação e pelas diversas subcomissões Alcora. Ficou decidido também que a Organização iniciaria o seu funcionamento em Pretória, em Janeiro de 1974.

Faltava apenas o acordo financeiro, que viria a ser assinado em 8 de Março de 1974 entre o Governo Português (Ministério das Finanças) e o South Africa Reserve Bank para um empréstimo de 150 milhões de rands, destinado a financiar a aquisição de equipamento militar por Portugal.

Na sequência da aproximação política entre Portugal e a África do Sul, especialmente através das cimeiras desenvolvidas no âmbito do projecto “Alcora”, quando já estava decidido e em funcionamento um órgão permanente de planeamento “Alcora”, com sede em Pretória, os dois governos negociaram um grande empréstimo da África do Sul a Portugal no valor de 150 milhões de Rands. Este montante seria transferido para Portugal num prazo de 5 anos, em tranches de 5 milhões mensais, até um máximo de 50 milhões por ano. Destinava-se a suportar as despesas de Portugal com a aquisição de novos equipamentos e armamento. A prestação de Março foi imediatamente transferida.

Com o 25 de Abril, as transferências foram interrompidas, para não mais serem retomadas. Contudo, Portugal tinha já assumido compromissos vultosos por conta do empréstimo, na aquisição de equipamentos militares, incluindo os mísseis Crotale.

As negociações ao nível militar prolongaram-se até finais de 1975, sendo então transferido o problema para o âmbito dos Ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros.


6. Em 24 de Junho de 1974 teve início a sétima e última reunião do “Exercício Alcora”, mais uma vez em Pretória, em que os representantes dos três países se confrontam com os acontecimentos em Portugal e com o desmoronamento da organização tão longa e minuciosamente preparada para impedir o progresso do “Comunismo e da sua lança avançada, o Nacionalismo Africano”.

Nunca virá a saber-se como reagiriam vários sectores portugueses, tanto políticos como militares, ao conhecimento das decisões Alcora, se o 25 de Abril não as tivesse silenciado no momento exacto da sua divulgação. Com a máquina em movimento, é de supor que a reunião de alto nível prevista para Lisboa, no período de 24 a 28 de Junho, viesse a decidir a divulgação pública do acordo e do nível de cooperação já em execução e previsto, assim como das circunstâncias do seu funcionamento. Não se adivinha fácil a aceitação das resoluções de alto nível, de concretização de uma parceria melindrosa, e porventura inaceitável para alguns sectores do próprio regime. Mas o 25 de Abril não impediu a realização da reunião prevista para Lisboa (cautelosamente transferida para Pretória), que se revestiu de aspectos bastantes constrangedores.

Começou a reunião pela apresentação do relatório do DGSP, Director Geral de Planeamento Especiais, general R. Clifton. O responsável pela PAPO optou por ignorar completamente os acontecimentos de Portugal, porventura desejando que isso nunca tivesse acontecido ou esperando que nenhumas circunstâncias afectassem o desenvolvimento da sua organização. É o que justifica as suas primeiras palavras: “Desde que a ATLC se reuniu pela última vez em 9 de Novembro de 1973, foi estabelecida a organização PAPO sobre bases firmes e começa, parece-me, a desempenhar a sua função de alcançar os objectivos Alcora”. E prosseguindo: “Além da sua função de executar as tarefas especificamente determinadas pela ATLC, torna-se aparente que a PAPO é aceite como o veículo mais conveniente para coordenar e accionar quaisquer assuntos de carácter bilateral ou tripartido. Isto torna-se possível devido à composição representativa dos seus quadros e aos canais de comunicação que foram criados”.

O relatório desculpa depois alguns atrasos pela necessidade que houve de efectuar uma série de trabalhos administrativos, mas enumera algumas das tarefas cumpridas. Assim, entre Fevereiro e Abril, “efectuaram-se na PAPO onze reuniões das subcomissões Alcora para entrega das suas tarefas”, e embora este processo tenha atrasado a execução de trabalhos próprios da PAPO, a verdade é que isso “estabeleceu firmes alicerces para as suas futuras tarefas”. Continuando neste tom, o relator revela que “a primeira e prioritária tarefa de planeamento da PAPO foi a realização de um estudo designado por “Eliminação do Terrorismo”, que será distribuído. Uma falha contudo, aponta o general: “A PAPO tem dez oficiais a menos: sete de Portugal e três da Rodésia”, situação agravada pelo facto de “certos elementos do pessoal português serem cumulativamente adidos acreditados”, o que decerto não deixaria de se reflectir na capacidade da organização.

Mas se na aparência nada pareceu suficiente para alterar o tom do relatório, a verdade é que todos esperavam pela explicação portuguesa. A revolução de Lisboa, estava assente nos espíritos, desmoronara a construção Alcora.

Convidada então a delegação portuguesa a explicar “as possíveis consequências dos recentes acontecimentos, em Angola e Moçambique, e se havia vantagem na continuação do Alcora na sua forma actual”, não puderam os representantes portugueses furtar-se a abordar as questões que se levantavam e que os outros parceiros queriam escutar. Assim, em primeiro lugar, “não é conveniente nas actuais circunstâncias dar informações à imprensa sobre a existência do Alcora”, já que “as pressões internacionais podem interferir nas negociações em curso”. Quanto à influência da situação em Portugal no Alcora, vale a pena a transcrição da difícil resposta portuguesa: “O primeiro objectivo do Governo Português era obter um cessar-fogo nos territórios Alcora como pré-requisito para as conversações com os movimentos nacionalistas. Contudo, existem algumas diferenças de opinião com alguns partidos que querem imediatamente uma independência completa. O Governo Português não concorda com isto porque está convencido que os partidos que presentemente conduzem a luta não representam a opinião da maioria da população dos vários territórios. As pressões externas são fortes e é difícil nesta fase seguir uma linha de acção ou predizer um programa de acontecimentos. É também difícil prever o envolvimento militar futuro, mas se não se obtiver um cessar-fogo, Portugal assegura que continuará a combater o terrorismo. Em resumo, é difícil nesta fase planear a eliminação do terrorismo e compreendem-se as dificuldades da PAPO no estudo deste problema. Por causa das actuais preocupações internacionais e dos esforços da imprensa internacional para provar a existência de uma aliança Alcora, é inconveniente considerar nesta altura quaisquer acções conjuntas em Moçambique. O Governo Português assegurou já que evitará por todos os meios que os terroristas utilizem o território português contra os territórios vizinhos. Se a situação política evoluir continuando porém as Forças Armadas portuguesas responsáveis pela segurança militar de Angola e Moçambique, mantém-se a garantia anteriormente especificada. Desde que essa responsabilidade militar cesse então deixaremos de poder manter tal garantia”.

A mensagem era demasiado forte para que as ilusões continuassem. O Exercício Alcora tinha mesmo terminado.

Mas em Maio de 1975 houve ainda uma reunião em Lisboa de representantes militares da África do Sul com o estado-maior português, com o fim de dar solução à devolução dos materiais e equipamentos cedidos pela África do Sul a Portugal, no âmbito do extinto “Exercício Alcora”.

Era muito significativo o material emprestado pela África do Sul a Portugal. Os empréstimos tinham começado em 1969 e prosseguiram até 1973. Eram feitos sob uma designação codificada, como “operação Scapula”, “operação Oásis”, “operação Cadiz”, etc. Os materiais estavam a ser usados tanto em Portugal, como em Angola e Moçambique. As reuniões conjuntas iniciaram-se em 1974 e concluíram-se em Maio de 1975, quando uma delegação sul-africana se deslocou a Lisboa para acertar todos os pormenores da devolução. A correspondência entre as partes foi intensa, mas as operações de devolução prolongaram-se até 1976. Em muitos casos os materiais estavam a ser utilizados nas unidades portuguesas, fazendo parte do seu equipamento orgânico. Outras vezes foi necessário conferir o que regressava de Angola e Moçambique para se chegar ao acerto final. Em alguns casos os materiais ficaram nestes territórios, tornando inviável a devolução. A África do Sul aceitou que vários materiais fossem considerados obsoletos e não fossem incluídos na devolução.


7. Em suma, o “Exercício Alcora” foi uma aliança político-militar de Portugal com os regimes da África do Sul e da Rodésia, construída nos anos finais do regime português, com o fim de coordenar esforços e meios para dar combate mais eficaz aos movimentos autonomistas e de transformação interna dos regimes da África Austral.

As conversações bilaterais e tripartidas envolveram as maiores autoridades militares e políticas dos três países e traduziram-se pela instituição de um órgão de comando e direcção das operações militares em todos os territórios Alcora (Angola, África do Sul, Rodésia e Moçambique), na constituição de forças integradas e na definição de uma política de contra-subversão comum.

Está em aberto saber como iria o regime português enfrentar a divulgação pública da existência da aliança ou que medidas tinha preparadas para lhe dar seguimento prático, de acordo com as exigências dos seus parceiros. E quais seriam os projectos para os territórios que administrava e continuavam em guerra, não só Angola e Moçambique (territórios Alcora), mas também a Guiné.



2 comentários:

  1. É bom saber da História mas,será possível ter acesso a mais info.?

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  2. Eu e o Carlos de Matos Gomes publicámos um livro nas edições Objectiva com o título "Alcora - O Acordo Secreto do Colonialismo".

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