A
Revista da Associação 25 de Abril de Toronto, Canadá (Núcleo Salgueiro Maia) vem-se
publicando todos os anos, procurando os seus editores incluir textos elaborados
pelos convidados da A25A que se deslocam ou já se deslocaram a Toronto para
acompanharem as comemorações do 25 de Abril. Constituiu já um importante
repositório de pequenos depoimentos e histórias contadas por esses
protagonistas. Organiza a Revista o nosso amigo Carlos Morgadinho.
Também
eu tive o privilégio de ser o representante da A25A junto dos amigos do Núcleo
Salgueiro Maia em 2012.
Na
sequência desta presença, um dos meus textos para a Revista, publicado em 2014,
foi uma justa homenagem ao meu amigo Luís Carlos Veiga Vaz, falecido nesse ano.
O
Luís Carlos Veiga Vaz, conhecido entre nós por VV, acaba de nos deixar. Foi um
capitão de Abril e um grande amigo.
O
VV era do meu curso de Artilharia da Academia Militar. Foi um bom camarada,
bem- disposto, sempre com uma boa anedota para contar, amigo do seu amigo.
O meu curso de Artilharia em 2004. O Veiga Vaz está ao centro, de gravata vermelha. |
Também
fizemos juntos o curso de criptólogos, em 1971-72. Este curso decorreu no
Batalhão de Reconhecimento das Transmissões na Trafaria e juntou alguns dos futuros
participantes no Movimento dos Capitães, entre os quais se encontrava o capitão
Vasco Lourenço. Esta unidade acabou por se transformar num centro importante do
Movimento, onde foram feitos e copiados alguns dos seus documentos.
Entretanto,
eu fui mobilizado para Moçambique no Verão de 1973, tendo o embarque sido
marcado para o dia 9 de Setembro, exatamente o dia da reunião de Évora do
Movimento dos Capitães. Sendo-me impossível estar presente encarreguei então o
Veiga Vaz de me representar e assinar, se fosse possível fazê-lo. Soube depois
que ele se atrasou na chegada ao ponto de encontro junto ao Templo de Diana em
Évora e já não recebeu o croquis que indicava o caminho para o local da
reunião. Como ele faltou, também eu faltei…
A
partir de então fizemos percursos diferentes, mas nunca deixámos de estar em
contacto. Ele continuou a acompanhar o Movimento em Portugal e eu fui participar
na primeira reunião do Movimento em Moçambique, realizada no dia 13 de Setembro
em Nampula.
Neste
texto gostaria de recordar uma carta que lhe enviei em 20 de Junho de 1974, imerso no mar de problemas que nos rodeavam por todos os lados.
Anunciando-lhe
as notícias por que ele estava à espera, começava por lhe dizer que tínhamos
muito trabalho, mas “poucos resultados positivos”. De facto, o que se
verificava é que havia “de início resistências à nossa ação. Depois, e agora
ainda, pouca convicção nas perspetivas novas”.
Dois
dias antes, tínhamos enviado ao MFA de Lisboa uma mensagem com a seguinte
passagem: “Vemos com preocupação falar-se muito em pureza de princípios do Programa
do MFA, mas não executar no sentido da eficácia. Não quisemos fazer uma revolução
romântica ou a brincar, muito menos uma revolução perdida. O Movimento deve
organizar-se, e não dissolver-se. Sente-se nos sectores reformistas ligados às estruturas
que quisemos destruir tentarem recuperar. O ideário do MFA deve ser dinâmico,
sem paragens, sem transigir (…)”. (Nota: texto ligeiramente corrigido da sua
linguagem telegráfica).
Eu
calculava que o Veiga Vaz estava a par do que se ia passando com o MFA em
Lisboa e pedia-lhe para transmitir as minhas notícias a outros amigos do
Movimento e para que nos dessem as orientações que nos faltavam. Dava-lhe conta
de como estava organizado o MFA em Moçambique – Comissão Coordenadora do MFA
junto do Governador-Geral, Gabinete do MFA junto do Comandante-Chefe, ao qual
eu pertencia, e Comissões Regionais, tendo todos os órgãos sido eleitos
democraticamente. E acrescentava que estava lançada “toda a infraestrutura do
Movimento”, mas que “começava aí todo o trabalho, pois toda a doutrina e
consciencialização dependiam do Gabinete”.
A carta
abordava em seguida uma nova questão, a Frelimo, como movimento nacionalista de
Moçambique: “A Frelimo é um movimento emancipalista que tem a seu favor: uma
luta heróica de dez anos; reconhecimento internacional; ideologia popular; aceitação
incondicional do povo. Para além disso, possui: uma verdadeira força no terreno
de luta; uma consciencialização bem marcada”.
Confessava-lhe
então que lhe escrevia para que “tu aprecies sozinho ou em conjunto com outra
malta e nos digam as vossas ideias” e “se puderem dizer opiniões do MFA, isso
será excelente”. Quanto à questão militar, e para que não restassem dúvidas,
acrescentava depois que as tropas “acabaram a guerra”, pois ela “deixou de ter
significado para o povo português e para o povo moçambicano”. Se o meu amigo
queria que lhe relembrasse as razões para o que estava a acontecer, não era
muito difícil: “As cartas que os militares recebem, as notícias que ouvem, as
convicções pessoais que afloram, as tendências pacifistas do homem, a falta de
substrato desta guerra – não há Pátria em perigo, não há inimigo invasor – tudo
isto se aglomera para não haver moral, não haver disciplina possível e estar a
hierarquia posta em causa”.
Também
na mensagem enviada ao MFA de Lisboa atrás referida, terminávamos desta
maneira: “Os povos do ultramar correm verdadeiro perigo, com possibilidades de racismo,
tribalismo, neocolonialismo e confrontos nos centros populacionais. A nossa
missão nova e nobre é evitar tais possibilidades, e a nossa intenção firme é descolonizar,
reconhecer a autonomia dos povos e ajudar”. (Nota: texto ligeiramente corrigido
da sua linguagem telegráfica).
Por
isso, a carta ao Veiga Vaz refletia estes sentimentos, quando lhe dizia:
“Inverteram-se os dados, (mas) parece que muita gente não deu por isso;
esqueceram-se os desejos do povo português. O fim da guerra colonial pode vir
longe ou pode estar iminentemente perto (…)”.
E
continuava: “Compreendemos porém que nada ou pouco aqui podemos fazer. O
problema é político e não militar e hão de ser os políticos a cagar a solução. E, ou eles o fazem
depressa ou as Forças Armadas, mais uma vez, estão postas em xeque. Nisso, o MFA
tem de meditar. E para meditar precisa de se unir. Está aqui o terceiro
problema”.
Por
estes dias em que eu fazia ao meu amigo Veiga Vaz um extenso balanço da nossa
ação e dos nossos pontos de vista, realizávamos uma reunião alargada do MFA em
Nampula e o Gabinete apresentava à Assembleia um documento onde afirmávamos: “O
povo português quer ser livre. Está consciente do que significou a submissão do
seu querer, durante quase cinco decénios, a interesses estranhos aos da
comunidade portuguesa. Manifestou-o inequivocamente nos dias de euforia que se
seguiram ao 25 de Abril. A experiência passada mostrou-lhe que essa liberdade
nunca será possível enquanto o seu nome e a sua vontade forem utilizados para
oprimir e retirar a liberdade a outros povos. (…).
Está
em jogo o prestígio da nação portuguesa e o próprio prestígio das Forças
Armadas. O MFA reconhece perfeitamente que o prestígio das Forças Armadas, tão
duramente abalado antes do 25 de Abril, se há de reconquistar (…) na medida em
que as Forças Armadas forem capazes de assumir o novo objetivo que se propõem à
realização da paz e à restituição da dignidade aos povos da Guiné, Angola e
Moçambique, denunciando, se necessário, todas as práticas que no seu seio sejam
consideradas atentatórias dos novos ideais (…)”.
Chegava
agora a vez de transmitir ao Veiga Vaz, companheiro que me escutava à distância
e que aliviava as minhas inquietações, outro assunto: “O problema que vem a
seguir (…) é o bem do Povo. O Povo tem as costas largas. Já o Marcelo fazia o
que fazia pelo bem do Povo! E até a PIDE. A Revolução foi feita porque nós
interpretámos o sentir da esmagadora maioria do Povo Português. Repara –
interpretávamos o que o Povo não queria: a opressão, o fascismo. Mas saberemos
nós interpretar o que o Povo quer? Melhor, saberemos dar-lho? Parece-me bem que
não”.
Apresentava-lhe
finalmente uma última questão: “Vamos ao próximo problema: autodeterminação e
independência. Autodeterminação pode significar neocolonialismo. Mas que poderá
um MFA formado por uma dúzia de militares politizados fazer, contra a sua
própria ultrapassagem? (…)
Resta
de tudo isto uma constante. E aí vai mais um problema – A PAZ. A PAZ é que é o
autêntico querer do Povo”.
E
num desabafo: “Acabo de ouvir que as principais preocupações da França são a
inflação, o voto aos 18 anos e as escutas dos telefones. Abençoado país que
teve e manteve, em tempos, uma guerra colonial!”.
Os
sentimentos que expressava livremente ao meu amigo Veiga Vaz, estavam de acordo
com os que o Gabinete do MFA de Moçambique expressava oficialmente ao MFA de
Lisboa, sem obter a resposta que esperávamos – que as conversações com a
Frelimo estavam no bom caminho… Por isso alertávamos os nossos camaradas, em
mensagem de 1 de Julho, uma semana depois da carta: “É na verdade preocupante e
intolerável a situação de impasse a que se está chegando. Sabe-se que,
existindo uma evidente contradição entre os objetivos que a política pretende
atingir e a realidade que existe em Moçambique, se irá dar uma rotura dentro
das Forças Armadas. E somos de parecer que quanto mais abaixo na escala
hierárquica essa rotura acontecer piores virão a ser as consequências. De
qualquer modo está iminente uma tomada de posição dos escalões inferiores”.
Alguns
dias depois recebia resposta do meu amigo, evidentemente sem as soluções
milagrosas que eu lhe pedia. Ninguém, naqueles dias de sobressalto, sabia quais
eram as melhores soluções e muito menos, como se caminhava para elas. O tempo,
que todos sabiam dever medir-se em dias, não deixaria de ir desenhando a
solução que era imperativa. Um passo de gigante foi dado um mês depois, na
declaração do Presidente da República e na Lei 7/74 de 27 de Julho, que
declarava o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e
independência.
E
nós, envolvidos no tumulto daquele período decisivo, acompanhámos o dia-a-dia
de um tempo escaldante, em que cada decisão contribuía para um célere
encerramento da questão que nos movia e que vinha de muito longe, dos confins
da nossa história…
Agora,
que o meu amigo Veiga Vaz nos deixou, posso recordar quanto é importante ter
amigos a quem possamos abrir a nossa alma e a quem possamos recorrer, nem que
seja para ouvirem os nossos desabafos.
Muito
obrigado do coração, meu caro VV.
Em Toronto, com o casal Francisco Sousa Mendes, neto de Aristides Sousa Mendes, também convidado pela A25A de Toronto nesse ano de 2012. |
Sem comentários:
Enviar um comentário