sexta-feira, 24 de março de 2017

TEIXEIRA GOMES, UM DIPLOMATA EM LONDRES



Logo que terminei o curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1980, fui convidado por alguns professores para participar em projetos de investigação que nessa altura tinham entre mãos. Passou-se isso com o Prof. João Medina, com quem participei na História Contemporânea de Portugal, que veio a ser publicada em 1985, e aconteceu também com o Prof. Vítor Vladimiro Ferreira, com quem fiz uma longa investigação no Arquivo Histórico Diplomático sobre a correspondência oficial da Legação de Portugal em Londres, entre 1900 e o início da Grande Guerra. Fiquei com a parte respeitante ao ministro (embaixador) Manuel Teixeira Gomes, correspondente ao período 1911-1914.

O trabalho foi publicado logo em 1982 na Análise Social, mas fica aqui a minha parte, com outro título.

Análise Social, ver aqui:




É nosso objectivo procurar, no meio da infindável lista de razões que precipitaram o penoso caminho da experiência republicana, um escolho que se associou a elas, feito de pequenos nadas escondidos na correspondência oficial de Teixeira Gomes, ao longo dos anos de 1911 a 1914.

As monarquias europeias, e em especial a inglesa, se suportavam mal a sua congénere portuguesa, não aceitaram de bom grado a solução republicana.

A oposição ao novo regime procurou organizar-se onde o terreno lhe era mais propício e o contra-ataque pudesse ser planeado, organizado e executado.

Ficaram então em Espanha os executantes e refugiaram-se em Inglaterra os marechais. A conspiração começou de imediato e manifestou-se em Inglaterra de três formas: acolhimento da família real e facilidades concedidas à movimentação dos seus apoiantes; campanhas sucessivas de imprensa sobre aspectos globais ou factos ocasionais ocorridos em Portugal, por forma a levar a opinião pública a manifestar-se contra o novo regime; atitudes do Governo Inglês, adiando o reconhecimento da República, por forma a manter as mãos livres, exigidas pelos apoios a uma viragem da situação.

Aspeto da inauguração da estátua da Rainha Vitória,
em Londres, em 1911, ano em que Teixeira Gomes iniciou
funções como Ministro de Portugal em Londres.

A análise da correspondência de Teixeira Gomes faz ressaltar as questões fulcrais que se colocaram à República no âmbito das suas relações externas. O plano que Teixeira Gomes acaba por delinear para a sua acção diplomática centra-se em torno de meia dúzia de problemas vitais, quase todos inter-relacionados.

Não parece, assim, de surpreender que a primeira grave questão que se coloca à Legação Portuguesa em Londres seja efectivamente a de conseguir opor-se aos planos da conspiração que fazia de Inglaterra uma praça-forte.

A acção conspirativa desenvolvia-se a vários níveis - junto das altas esferas influentes (família real, aristocracia, almirantado), onde os conspiradores procuravam apoios políticos; junto da imprensa, onde era notória a intenção de manter latente a questão portuguesa, influenciar a opinião pública contra a República e agitar certo tipo de problemas sensíveis ao espírito inglês e baseados em atitudes (com um fundo de verdade ou não) dos novos dirigentes e das novas instituições portuguesas; ainda junto de outros emigrados portugueses, no sentido da sua mobilização para a causa, da recolha de fundos e da preparação de meios militares de intervenção: equipamento de navios e preparação de incursões.

Teixeira Gomes procurou guiar-se por um plano razoável e possível, sabendo que o essencial da questão portuguesa não era resolúvel tomando somente em consideração os meandros das relações externas.

A leitura da sua correspondência oficial transmite a impressão de que Teixeira Gomes possuía uma central de informações, tão precisas e oportunas eram as advertências de que se fazia porta-voz, quer junto do Governo Português, quer junto do Foreign Office.

Floristas de Londres, em 1911.

Já depois de ter feito abortar várias tentativas de compra de navios de guerra por parte dos conspiradores, normalmente com recurso ao Foreign Office e levando na mão o nome do navio, o porto em que se encontrava e, por vezes, o conhecimento da casa encarregada da transacção, Teixeira Gomes, recebendo, em 4 de Setembro de 1911, informações de Lisboa que asseguravam uma iminente entrada em Portugal de conspiradores vindos da Galiza, noticia com surpreendente pormenor, em 13 do mesmo mês, que os comandantes da conspiração estão deveras descontentes com a pouca actividade de Paiva Couceiro.

Ainda passados dois dias, a 15 de Setembro, Teixeira Gomes, através de um seu agente, informa o dia da incursão - 25 de Setembro -, assim como os locais de concentração em território espanhol: Orense, Tui, Santiago e Salamanca.

Adiada esta, Teixeira Gomes pôde ainda alertar, em 4 de Outubro, talvez já não a tempo, embora o sistema Marconi tivesse sido estabelecido no princípio de Agosto, «como desejava a Inglaterra», que se dava como certa a entrada de Paiva Couceiro em Portugal com 4000 homens. Acrescentando, com vaga ironia, que se queda entre o humor e o pragmatismo do seu espírito de negociante, que as firmas comerciais da City tinham uma posição favorável à República.

Aspeto das tropas republicanas próximo de Vinhais, enviadas para combater
 as incursões monárquicas. Na frente reconhece-se António Granjo,
 que viria a ser primeiro-ministro, cargo em que foi assassinado
 no episódio da "Noite Sangrenta", em 1921.

Contudo, a 6 de Outubro, apesar da evidência dos factos, quando a Reuter dá a notícia da entrada do corpo de conspiradores na fronteira próximo de Bragança, Teixeira Gomes informa em telegrama: «Desmenti logo», o que constitui, ao que julgamos, uma das poucas precipitações do ministro português em Londres.

O rescaldo desta primeira incursão couceirista iria prolongar-se até Novembro, após o que a questão esmoreceu, mantendo-se contudo latente. Ressurge em Abril de 1912, em ofícios demonstrativos de novas preocupações do Governo Português. Confirmando este a possibilidade de nova incursão dos conspiradores, auxiliados por navios que se dirigiriam sobretudo ao Porto e tendo como comandante da esquadra Azevedo Coutinho, Teixeira Gomes reinicia as diligências junto do Foreign Office, no sentido de o Governo Inglês intervir junto da Espanha para que esta impeça as manobras conspirativas contra a República. O Governo Inglês recusa-se a intervir, argumentando que o caso deve ser tratado entre o Governo Português e o Governo Espanhol, através de notas «insistentes, justificadas e enérgicas». Aliás, essa questão era de tal forma considerada no âmbito dos dois governos peninsulares que o Governo Inglês recusara intervir quando o Governo Espanhol pedira os «bons ofícios do Governo Inglês (e esta informação era dada confidencialmente!) para impedir ou sustar a propaganda republicana de portugueses em Espanha». Ultrapassada, contudo, a segunda incursão, em Julho de 1912, o tempo parecia consolidar as instituições republicanas.

A ideia monárquica, desacreditada pelo longo fracasso da sua existência e pela memória viva do seu apodrecimento, não se mostrava capaz de vingar pela afirmativa, pela luta, pela recuperação dos seus valores expulsos. As incursões foram tentativas que tiveram um sabor a farsa, quedando-se entre dois receios: o de não mais voltar e o de ter de voltar. Mudou de estratégia por isso a reacção monárquica. Aniquilada na sua capacidade de disputar activamente o poder que perdera, a Monarquia estudou, com a astúcia de velha raposa, outras formas de regressar. E Teixeira Gomes, também astuto, descobre, algo desalentado, a táctica, inteligente e difícil de contrariar, do inimigo.

Páginas da Ilustração Portuguesa, com vários aspetos das incursões
 monárquicas de 1912, em Chaves.

Em 3 de Outubro de 1912 tem oportunidade de lançar o primeiro aviso: “[...] por informações colhidas em várias fontes cheguei à certeza de que as esperanças de restauração renasceram no espírito dos monárquicos, os quais contam com as dissenções dos grupos políticos de que se compõe o Parlamento português e o inevitável descontentamento que essas dissenções criarão no público, para renovar as tentativas de aliciamento tanto nos elementos militares como civis”.

Em 2 de Janeiro de 1913, como que num balanço do ano anterior, Teixeira Gomes renova as suas preocupações: as esperanças que os monárquicos alimentam baseiam-se «na falta de entendimento entre os vários partidos republicanos que aspiram ao poder, provocando assim a instabilidade dos ministérios e dificultando a sequência na execução de qualquer plano político e económico».

Depois deixa arrastar-se de novo pela luta contra a conspiração concreta, traduzida na compra e transporte de armamento e munições, na movimentação dos mais importantes agentes realistas e na forma como a imprensa inglesa trata a situação em Portugal e aproveita os mais pequenos incidentes para demonstrar a sua nunca sarada irritação contra o novo regime português.

É que o campo essencial da luta deixara de ser a Espanha ou a Inglaterra, os navios, o armamento ou a angariação de fundos. O campo passara-se para o interior, desenvolvendo-se em dois círculos privilegiados da reacção - as zonas rurais e a área do poder. Teixeira Gomes, consciente embora da situação, estava demasiado longe para se aperceber completamente do perigo que ela representava.

Ir-se-ia manter longamente mergulhado em campos de luta que mexiam mais com a sua sensibilidade — a questão colonial e o problema das campanhas de opinião desencadeadas em Inglaterra a favor dos presos políticos portugueses e contra a escravatura praticada nas colónias portuguesas.


Embora sendo indubitável que a preocupação dominante de Teixeira Gomes se prendeu, durante os primeiros tempos da sua permanência em Londres, com a consolidação das instituições republicanas e, portanto, com a luta contra os conspiradores monárquicos, é igualmente fora de dúvida que um assunto houve que constantemente surge como inquietante para o espírito do representante português — a política colonial.

A estratégia das potências europeias confrontava-se com as limitações dos recursos de cada uma. Cada vez mais o desenvolvimento do capitalismo necessitava de áreas de expansão, que só eram possíveis nas zonas periféricas da própria Europa ou nos territórios coloniais. A Alemanha, porque historicamente não tivera acesso à posse desses territórios, necessitava mais do que qualquer outra nação de uma solução urgente para a sua capacidade expansiva. O seu potencial não poderia deter-se perante meras formulações de carácter histórico, jurídico ou político. A tensão europeia fazia adivinhar perturbações a breve prazo.

Teixeira Gomes não tinha dúvidas acerca das dificuldades que se aproximavam. Na sua análise, a hipótese mais provável respeitava à eventual partilha dos territórios coloniais portugueses pelas potências europeias — e em especial pela Alemanha—, por forma a aplacar a gula expansionista de Berlim. E isto, Teixeira Gomes sabia-o, estava a negociar-se entre essas potências, especialmente entre a Inglaterra e a Alemanha. Por isso, o seu esforço de pesquisa se dirigia para a obtenção de informações que lhe possibilitassem compreender a estratégia que estava delineada.

A primeira questão que lhe surge é uma campanha organizada por um movimento antiesclavagista, do qual Teixeira Gomes, embora intuitivamente lhe dedicasse cuidados especiais, apenas compreenderia o significado quando pôde ligá-lo à existência de negociações secretas entre a Inglaterra e a Alemanha. De facto, em Maio de 1911, o representante português, a propósito da questão antiesclavagista, informa que tem «já um considerável dossier de documentos que a ela se referem, não perdendo ocasião alguma de interrogar quaisquer individualidades que se encontrem ligadas a esse movimento, habilitando-me para, em qualquer lance, encetar uma campanha de ataque contra os que falsamente deprimem os sentimentos humanitários dos Portugueses ou simplesmente rebater as suas acusações».

Mas, enquanto o problema do esclavagismo parecia ainda de menor importância, um outro dominava as atenções de Teixeira Gomes. Na verdade, apesar das repetidas afirmações de credenciados representantes ingleses aos seus insistentes pedidos de esclarecimento, ia-se visivelmente «acentuando a ideia de que não poderá haver harmonia perfeita entre as duas grandes potências enquanto a Inglaterra não entregar à Alemanha a melhor parte, se não a totalidade, das nossas possessões na África continental». Isto tornava-se publicamente claro quando um jornal alemão, o Morgen Post, publicava, em 4 de Dezembro de 1911, um artigo mostrando a conveniência de a Alemanha exigir parte das colónias portuguesas como compensação da sua abstenção nos negócios da Pérsia, que Teixeira Gomes comenta da seguinte forma: “Esta notícia espalhada pela Central News terá grande retumbância em Inglaterra, onde parte da opinião se vai declarando favorável a um acordo com a Alemanha, à custa das colónias portuguesas”.

Aspeto de instalações de secagem do cacau, em S. Tomé,
 na época em que Teixeira Gomes se opunha à campanha
dos "chocolateiros" britânicos na imprensa de Londres.

E, contudo, havia uma face dramática da questão colonial para um país como Portugal, impossibilitado de, por si só, se opor aos interesses das grandes potências. A resposta de Teixeira Gomes a uma questão do seu ministro dos Negócios Estrangeiros é extremamente elucidativa: “Tomo a liberdade de observar a V. Ex.a que não seria possível quando mesmo esta Legação dispusesse de capitais importantíssimos e pudesse influir directamente nos personagens políticos, quase todos membros da Câmara dos Pares, que dispõem dos jornais ingleses, não seria possível empreender uma campanha jornalística eficaz para preparar a opinião pública no que diz respeito à possibilidade de a Inglaterra obter ou não vantagens da Alemanha a troco da cedência das colónias portuguesas, sem previamente interessar nessa campanha um ou dois grandes partidos que disputam o poder. Ora isto é absolutamente inexequível pela razão óbvia de que nenhum desses partidos quereria tomar compromissos num assunto de cuja resolução pode depender a paz universal.

As perspectivas portuguesas iriam agravar-se quando Teixeira Gomes, em finais de 1912, se apercebe, através de alguns artigos publicados no jornal Spectator, que há intenção de ligar a propaganda antiesclavagista com o acordo anglo-alemão, por forma que ambas as questões «se reforcem mutuamente, a fim de acelerar a nossa ruína colonial». E Teixeira Gomes acrescenta: “Informações de origem diversa, mas segura, confirmam-me a realidade desses intuitos, não me restando actualmente dúvida de que se fazem preparativos para uma campanha formidável destinada a convencer o povo inglês de que nas colónias portuguesas existe a escravatura, incitando-o ao mesmo tempo a que se manifeste contra a aliança anglo-portuguesa, a pretexto de
que para a Inglaterra constitui uma vergonha manter uma aliança com países onde se exerce aquele abominável comércio.

A estratégia das grandes potências apresentava-se clara ao representante português. A hipótese de resolver o conflito latente à custa de Portugal tomava vulto e a conjuntura parecia confirmar uma credibilidade cada vez maior da via mais desfavorável a Portugal. Realmente, na opinião de Teixeira Gomes, «os horrores da guerra dos Balcãs [...] sugerem na opinião inglesa a necessidade de os evitar no que respeita a uma possível guerra com a Alemanha, e a ideia de que a partilha das colónias portuguesas aprasará ou evitará o conflito pode tomar vulto no público inglês, acarretando-nos toda a classe de dificuldades e dissabores». Não seria necessário muito tempo para que o plano geral parecesse ainda mais claro, já que tudo induzia Teixeira Gomes a pensar que a campanha antiesclavagista era auxiliada pela Alemanha. Efectivamente, «as informações particulares por mim colhidas em diversas fontes, tudo corrobora a minha desconfiança de que a Alemanha auxilia, se é que não dirige e subsidia essa campanha». E acrescenta, procurando enquadrar esta questão no quadro mais amplo da atitude alemã: A Alemanha é hoje a nação que maiores somas despende não só na espionagem militar, como nos trabalhos de sapa que facilitam a sua acção diplomática, não sendo portanto de estranhar que [...] não hesite em gastar quanto seja necessário para conseguir que nos vibrem um golpe decisivo, como seria a denúncia do nosso tratado de aliança com a Inglaterra. Este é indubitavelmente o seu objectivo.

Perante o iminente agravamento da situação, Teixeira Gomes apresenta, no alvorecer do ano de 1913, um plano de oposição às manobras alemãs, que, só por si, denuncia as bases de um projecto político e económico, jamais conseguido, da burguesia portuguesa.

Dele constam as seguintes medidas concretas:
1.º Organização da nossa administração colonial, devendo os funcionários a cujo cargo ela incumbe ter a necessária competência intelectual e moral;
2.º Assegurar as garantias devidas, conforme os tratados, aos negociantes estrangeiros que negoceiam nas nossas colónias;
3.º Extinção de quaisquer actos que possam induzir à suspeita de que nas nossas colónias se exerce o tráfico de escravatura;
4.º Activa defesa em Inglaterra contra a campanha e acusações dos «chocolateiros»;
5.º Conclusão do Tratado de Comércio Anglo-português;
6.º Organização de um plano económico e financeiro, tanto para a metrópole como para as colónias, que, aceite por todos os partidos, não corra o risco de gorar pelo facto de haver mudanças ministeriais;
7.º Organização e desenvolvimento do Exército Português, cujo plano possa realizar-se progressivamente, também ao longo das crises ministeriais.

Subsidiariamente, a constituição da Câmara de Comércio Anglo-Portuguesa, de modo a ter condições de vida, e a reorganização da Legação de Portugal em Londres, pondo-a em termos de poder atender com proveito às múltiplas questões que ela deve tratar.


A dependência de Portugal não poderia evidentemente solucionar-se através do projecto republicano. A situação, herdada da longa mediocridade política da dinastia de Bragança, prolongou-se para o pós-5 de Outubro e a República não conseguiu desembaraçar-se do essencial dessa dependência.

Os vaivéns de Teixeira Gomes entre a Legação de Portugal e o Foreign Office, excelentemente retratados na correspondência oficial do nosso representante, têm também o mérito de nos transmitir um quadro bem expressivo do tipo de relações que foi necessário manter (ou mesmo incrementar) com o Governo Inglês.

Reportando-nos apenas ao período em análise — Abril de 1911 a Julho de 1914 —, e sem qualquer pretensão de sermos exaustivos, pudemos retirar da correspondência oficial de Teixeira Gomes um significativo número de atitudes políticas do Governo Português demonstrativas da clara dependência que mantivemos relativamente à Inglaterra, à sombra de uma aliança centenária que bem raramente funcionou a favor de Portugal.

É assim possível surpreender cerca de duas dezenas de pedidos de interferência junto de outros governos feitos por Portugal ao Governo Inglês. Mais de metade respeita a interferências junto do Governo Espanhol, quase sempre a propósito dos problemas levantados pela presença de conspiradores monárquicos na fronteira da Galiza (embora mereçam destaque outros casos, como, por exemplo, a questão das ilhas Selvagens). Mas encontram-se neste rol igualmente pedidos de interferência junto dos Governos Alemão (fronteira de Angola), Holandês (problemas em Timor) e Chinês (problemas em Macau).

Foi possível também isolar vinte e três casos de pedidos de apoio, que se estendem desde o político ao diplomático e ao militar. Apoio diplomático em Madrid, no Japão, na Itália e na China; apoio político no problema da divisão das colónias portuguesas (assunto em que, paradoxalmente, a Inglaterra era parte interessada) e na visita, nunca conseguida, de navios de guerra ingleses a Lisboa. Apoio militar na formação de técnicos navais, no estudo por militares portugueses de certos esquemas da defesa de costa em Inglaterra, no conhecimento da forma de contabilidade dos arsenais ingleses e mesmo no fornecimento de um modelo de «mochila cirúrgica», que aliás custou perto de onze libras. Estas informações militares, quando eram fornecidas pelo Governo Inglês, traziam sempre um aviso de confidencialidade e uma inocente advertência de abertura de excepção relativamente ao pedido do Governo Português.

Mas é ainda mais extenso o número de pedidos de informações sobre procedimentos do Governo ou da Administração inglesa ou mesmo da própria sociedade - uso de hábitos talares em Inglaterra, organização da Cruz Vermelha e da Polícia de Londres, condições financeiras e técnicas da instalação do sistema radiotelegráfico, lista das mercadorias com isenção, funcionamento das minas de carvão e do cerimonial de Estado.

Bilhete postal da época da Grande Guerra, salientando
a aliança entre Portugal e a Inglaterra.

Detenhamo-nos contudo num caso exemplar — o do reconhecimento da República — e concluamos que a paciência política pode atingir certos limites, especialmente quando as condicionantes se apresentam exageradamente influentes.

Tratava-se pois de conseguir o reconhecimento da República pelas potências europeias, e em especial pela Inglaterra, monarquia que todas as outras reconheciam com primazia nos assuntos portugueses. Contudo, as «altas esferas de influência», como as costumava apelidar Teixeira Gomes, nunca se haviam mostrado osso fácil de roer pela novel diplomacia portuguesa. Enquanto a República patenteia, debaixo dum nervosismo crescente, a necessidade, a urgência, o dever do reconhecimento, a Inglaterra, vagarosa, exasperante e calculista, promete e adia, condiciona e joga.

Arrastam-se as negociações, justifica a Inglaterra a sua demora, põe condições e marca prazos diversos, numa espécie de jogo de polícias e ladrões, em que sempre ganham os polícias.

Em 10 de Maio de 1911, Langley, subsecretário de Estado do Foreign Office, promete o reconhecimento imediatamente após as eleições, para logo em 26 adiantar que tal será impossível antes da eleição do chefe de Estado, já que só este pode aceitar credenciais. Mas em 31 torna-se necessário que a Constituinte reconheça o actual governo! A paciência diplomática de T. Gomes continua intocável; a paciência política de Bernardino Machado é que está por um fio.

Mas o Foreign Office reserva mais surpresas. Em 24 de Junho alude «ocasionalmente» à questão da indemnização dos bens das igrejas inglesas e à necessidade de proceder ao reconhecimento da República por acordo com outras potências europeias. Finalmente, sem máscara, põe novos dados na mesa: a questão das igrejas é condicionante do reconhecimento.

Por isso, a 17 de Julho, Bernardino Machado define a posição portuguesa: «[...] reconhecimento quando quiserem.» Posição a que as prementes necessidades da política bem depressa vão retirar significado.

Em 15 de Agosto, o Governo Inglês apresenta o último «pedido» para modificação do regulamento da questão das igrejas, exactamente para ser alterada a segunda parte do artigo 3.º, referente ao registo das igrejas. Assente a modificação e aceite o texto do regulamento, o reconhecimento tomou-se iminente.

Veio a ocorrer em 11 de Setembro. Foi, apesar de tudo, uma difícil vitória da diplomacia portuguesa.


Finalizamos com um episódio que caracteriza, de forma exemplar, a natureza das relações estabelecidas entre Portugal e a Inglaterra. Os actos políticos demonstrativos do apoio inglês às instituições portuguesas, tradutores da efectiva vigência da velha Aliança Luso-Britânica, revestiam-se permanentemente de grande significado para o Governo Português, que, através deles, podia demonstrar a sua estabilidade e o seu crédito.

A visita de um vaso de guerra inglês ao porto de Lisboa foi meta diplomática de muitas horas de conversação entre Teixeira Gomes e vários funcionários do Foreign Office, incluindo o próprio ministro, Sir Edward Grey. Após a segunda incursão no Norte de Portugal, em Julho de 1912, a Espanha faz deslocar a Cascais, em atitude classificada de provocação evidente, uma pequena esquadra — «três fracos contratorpedeiros», como os classifica com disfarçado temor Augusto de Vasconcelos, ministro dos Negócios Estrangeiros. Por isso o Governo Português pede encarecidamente à Inglaterra que mande alguns vasos de guerra a Lisboa, em ofício de 15 de Julho, e a Inglaterra, quatro dias depois, nos aconselha a que não consideremos provocação a presença dos contratorpedeiros em Cascais, pois tal é a posição do Governo Inglês. Aceitámos, e só em 9 de Setembro, quando os fracos contratorpedeiros haviam jádeixado em sossego o mar de Cascais, renovamos o insistente pedido; mas apenas em 30 de Setembro do ano seguinte se atreve Teixeira Gomes a dizer que as conversações para a visita de navios de guerra ingleses a Lisboa estão bem encaminhadas. A 16 de Outubro de 1913, Teixeira Gomes pode informar que o cruzador Active visitará Lisboa, relatando em pormenor os meandros das «altas esferas influentes» que acederam finalmente a este acto de tão grande significado.

Porém, dez dias depois, as mesmas esferas, sempre atentas aos pretextos, sempre inclinadas a jogar o seu peso, aparentemente contrário à manifesta boa-vontade do Governo Inglês, faziam recuar ao ponto zero todo o esgotante processo de conversações — a visita do Active foi cancelada.

Por essa altura, Sir A. Hardinge, ministro inglês em Lisboa, fora já transferido para Madrid95. Um seu relatório, redigido em termos vigorosos contra a visita do Active, constituiu a base da mudança de atitude do Governo Inglês, que, note-se, interrompeu a viagem do navio quando este seguia já a caminho de Lisboa.

Segue-se a este incidente uma intensa troca de notas entre Teixeira Gomes e Afonso Costa, interinamente acumulando os Negócios Estrangeiros com a presidência do Ministério. A opinião de Teixeira Gomes é que só Sir Hardinge pode desfazer a má impressão que os seus relatórios causaram através de uma rectificação que devia ser negociada em Lisboa, já que o novo ministro inglês não se atreveria a desdizer, de ânimo leve e em curto prazo, as opiniões do seu antecessor. Afonso Costa aceitou a sugestão e tentou conseguir uma forma satisfatória para ambas as partes. Mas tão resistente se mostrou o ministro inglês, de tal modo tentou deixar tudo na mesma através de dúbias promessas que bem demonstraram a sua má-fé, que Afonso Costa, num desabafo que a política da paciência não deveria permitir, mas que a paciência da política nem sempre consegue suster, telegrafa a Teixeira Gomes: «Com este ministro da Inglaterra nada mais tratarei.»

Mas de tal modo o incidente ficou latejando entre os dois países, que o primeiro navio de guerra inglês só viria a Lisboa já após o início da primeira guerra mundial.




2 comentários:

  1. Interessante. Confirma o que de á muito tento compreender: a inconcebível continuidade da Aliança que do meu ponto de vista se prende com o facto de termos mantido as colónias depois de termos perdido o controle das linhas de comunicação, o controle dos mares após a derrota da invencível armada. É ainda hoje um tratado de famílias reais que nunca serviu os interesses de Portugal.

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    1. Meu caro,

      Em 1913, o Reino Unido e a Alemanha negociaram mesmo a divisão das colónias portuguesas, mas o acordo perdeu oportunidade porque nada parecia satisfazer a Alemanha e a guerra apresentava-se como inevitável. Abraço.

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