sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

AINDA HÁ PROJETOS PARA OS ARQUIVOS DA LUSOFONIA?


Como diretor do Arquivo Histórico Militar fiz parte da Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda e Divulgação do Património Documental (COLUSO, abreviadamente), composta por duas secções, uma brasileira e outra portuguesa.
Em Julho de 2003 fizemos uma reunião em Lisboa de ambas as secções, como era habitual todos os anos, uma vez no Brasil e outra em Portugal. Nesse ano convidámos também representantes de outros países da CPLP. Fui encarregado da conferência de boas-vindas, em sessão realizada na Torre do Tombo.
Chamei à minha comunicação “Projeto Reencontro – Uma Janela para o Futuro”, que aqui mudo para um novo título.


 
Planta e fachada da Casa da Moeda da Baía, 1754 (AHU)














Em primeiro lugar desejo felicitar, em meu nome e em nome da Secção Portuguesa da COLUSO, os organizadores e os participantes deste Seminário sobre o Património Arquivístico nos Países da CPLP. É nestes encontros que surgem as oportunidades de conhecimento, de intercâmbio e de cooperação, susceptíveis de concretizar desafios e projectos comuns. Este seminário pode constituir um passo decisivo para uma aproximação dos Arquivos da lusofonia, no sentido da salvaguarda, preservação e acesso a um imenso património que guarda uma parte importante da nossa memória comum.

O processo de autonomia e independência dos territórios dependentes, ocorrida nos séculos XIX e XX, conduziu à dispersão da documentação de natureza histórica respeitante aos vários países envolvidos.

A investigação sobre as raízes multisseculares dos países que se autonomizaram tem de recorrer necessariamente aos acervos documentais guardados pelos países historicamente administrantes. Contudo, também uma parte da memória destes se encontra depositada em instituições dos que foram colónias.

Esta situação é reconhecida pela UNESCO que “considera património comum a documentação pertencente a países que tiveram um passado comum”.

Interpretando este sentimento mútuo, as relações culturais entre os novos países e as respectivas potências administrantes têm reconhecido a complementaridade dos respectivos patrimónios documentais e têm afirmado a necessidade de levar à prática a partilha do seu passado comum e a recuperação conjunta das suas raízes e memórias.

Há muito tempo que Portugal e Brasil procuram concretizar este movimento cultural de partilha, no sentido de recuperar a memória do período colonial de mais de três séculos, em que ambos tiveram um passado comum. Neste sentido, e enquadrado no espírito da UNESCO e de outros organismos internacionais, nasceu um projecto comum que tem como finalidade a microfilmagem de documentos existentes em Portugal e no Brasil, com interesse recíproco.

Para a concretização deste Projecto, foi criada a Comissão Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação do Património Documental (COLUSO), constituída por duas Secções: a Secção Portuguesa e a Secção Brasileira. A Secção Portuguesa, através do Projecto Reencontro, tem tido e continua a ter, como objectivo, a microfilmagem da documentação levada por D. João VI para o Brasil e que aí ficou, bem como da documentação produzida durante a permanência da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, e portanto, enquanto ali se centralizava o Império Português, e ainda de toda a imensa documentação anterior a este período, que de algum modo testemunha a presença portuguesa no Brasil-colónia, e que muitas vezes falta nos acervos documentais portugueses.

Mas o interesse português pelas fontes documentais brasileiras não se esgota naqueles períodos. De facto, a forte emigração portuguesa para o Brasil, com o respectivo reflexo na vida portuguesa, que se verificou ao longo de todo o século XIX e princípio do século XX, faz com que este fenómeno tenha de ser analisado a partir do cruzamento de fontes documentais, das quais uma parte considerável se encontra nos arquivos do Brasil.

Na actual conjuntura, quando os dois países se preparam para comemorar o bicentenário da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, em 2008, torna-se cada vez mais pertinente a necessidade de intensificar o Projecto Reencontro, a par e em conjunto com o Projecto Resgate.

Vejamos então quais são os instrumentos de relação cultural entre Portugal e o Brasil, com referência à área dos Arquivos. Na sequência de anteriores documentos bilaterais orientados para o equacionamento da questão em causa, Portugal e o Brasil assinaram, em 16 de Agosto de 1995, um Protocolo de Cooperação, no qual ambas as partes acordavam na necessidade de adopção de “um projecto comum para a microfilmagem de documentos históricos portugueses e brasileiros e para a promoção da permuta de informações contidas nos acervos arquivísticos de ambos os países”.

No seguimento deste Protocolo foi criada a Comissão atrás referida. Por ocasião da assinatura do Tratado Luso-Brasileiro de Amizade e Cooperação, em Porto Seguro, a 22 de Abril de 2000, foi sublinhada a necessidade de cooperação na área da cultura e muito particularmente na área dos Arquivos.

Em 5 de Setembro de 2001, veio a ser assinado entre os Governos dos dois países um Protocolo Específico de Colaboração na Área dos Arquivos como resultado de um trabalho concreto que se vinha desenvolvendo, e que intencionalmente remete para o longo historial de tentativas de aproximação neste campo. Este Protocolo refere a aproximação das comemorações do bicentenário da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 2008, para, no seu Artigo Sexto, expressamente comprometer as duas partes a prorrogarem a “vigência das respectivas Secções da Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda e Divulgação do Património Documental”.

Resultando decerto do aprofundamento das relações entre os dois países, foi assinado em 17 de Maio de 2002 o Programa de Intercâmbio Cultural Luso-Brasileiro, cujo Artigo 18º dedicado aos Arquivos diz: “As Partes prosseguirão a cooperação na microfilmagem, bem como a inclusão em outros suportes electrónicos, de documentação existente nos arquivos de ambos os países e relevante para a história comum portuguesa e brasileira, no âmbito do Projecto Reencontro/Resgate e examinando em conjunto a viabilidade de participação nesse projecto de países de tradição cultural comum”.

Finalmente, na recente reunião dos Ministros da Cultura do Brasil e de Portugal, que teve lugar no Rio de Janeiro a 9 e 10 de Abril de 2003 foi acentuada e inserida em adenda à Acta, a importância dos resultados e da necessidade de continuação dos Projectos Reencontro e Resgate, ao mesmo tempo que de novo era manifestado interesse na possibilidade de elaborar um novo Projecto relativo à reprodução de documentação referente aos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) existente nos Arquivos de Portugal, do Brasil, e dos outros países lusófonos.

Por outro lado, este sentido geral traduziu-se também na chamada “Carta do Rio” assinada em 20 de Novembro de 2002 por responsáveis e representantes dos Arquivos Nacionais de seis países lusófonos que decidiram propor à CPLP, a criação de um Comité Especial com o objectivo de integrar as actividades desenvolvidas pelos Arquivos dos respectivos países.

Permitam-me, a este propósito, mais umas palavras.

Os Arquivos Nacionais, complementados com os outros Arquivos de cada país, guardam a memória documental da administração e do exercício do poder central, dos poderes acessórios e das actividades relevantes da sociedade. De uma forma geral, essa memória traduz-se na sobrevivência de séries e colecções documentais que desenham, testemunham e transmitem a complexa rede de relações, hierarquias e decisões das variadíssimas faces da administração e das actividades políticas, económicas, sociais, culturais, etc.

Reconstituir todas essas imensas teias e as suas sucessivas transformações, através das provas documentais, é uma das tarefas essenciais dos Arquivos. Toda a investigação histórica e de outras ciências humanas e sociais age com base na capacidade de reconstituir o ambiente e as cadeias de acção das sociedades objecto de estudo. Ora, as circunstâncias e peculiaridades de cada época e de cada espaço geográfico ditaram, muitas vezes de forma fortuita, a sobrevivência e salvaguarda das provas documentais que hoje constituem as nossas memórias colectivas. Por isso, elaborar guias de fontes que permitam localizar, reconstituir, recuperar e compreender as séries e colecções documentais e as respectivas hierarquias e entidades produtoras parece traduzir a tarefa estratégica dos Arquivos modernos. E se o investigador puder um dia saber o que existe, onde existe, em que condições existe; se puder com relativa facilidade efectuar pesquisas cruzadas entre Arquivos, definir as continuidades e interrupções documentais relacionadas com as suas orientações de investigação; se puder aceder à leitura ou reprodução dos documentos localizados e determinar razoavelmente as condições desse acesso; se tudo isso vier a ser possível, então os Arquivos estão cumprindo a sua missão essencial, construindo uma ponte sólida entre os patrimónios guardados nos seus imensos depósitos e a capacidade, inteligência e perspicácia interpretativa dos investigadores e estudiosos, tudo contribuindo para o cumprimento de uma estratégia cultural inerente a cada povo – o de nos conhecermos através do passado, de nos aproximarmos através da história, de nos projectarmos através de relacionamentos privilegiados.

Todos estes imensos projectos dos guias das fontes e todos os projectos directa ou indirectamente seus acessórios traduzem esforços, estratégias e capacidades que devem e podem integrar-se num tão amplo quanto possível plano geral, que nos permita saber o que temos, onde está, em que condições se encontra, como será possível fazer com que as espécies documentais se reencontrem na sua lógica de produção inicial, tudo resultando de um enorme esforço comum concertado, transparente e mutuamente compreendido.

Este plano estratégico, já preliminarmente definido ou com necessidade de aprofundamento, não pode, evidentemente, pôr em causa a identidade, especificidade e natureza de cada um dos Arquivos participantes, antes deve acentuar o seu especial papel no conjunto dos seus parceiros de projectos, por forma a que se possa reflectir, no resultado final, a relação de cada um com as circunstâncias de que é herdeiro.

O voto que a Secção Portuguesa da Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda e Divulgação do Património Documental aqui deseja deixar claramente expresso é o de que, em conjunto, saibamos definir os caminhos de aproximação, planear as estratégias de mútua e geral vantagem e concretizar as necessárias acções técnicas, com vista a consolidar a amizade, a capacidade de diálogo e a aproximação de pontos de vista que potenciem a resolução das grandes tarefas que temos pela frente. E que saibamos, num salutar e muito amplo projecto comum, definir uma estratégia de vantagens multilaterais, potenciando as capacidades de cada um dos países da lusofonia.


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